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26 de novembro de 2016

Mitologias de Fidel







Explicação do título: falando dos complexos problemas cubanos,
uma amiga francesa misturou os termos “crítica” e “política”,
inventando a palavra “policritique”. Ao escutá-la pensei (também
em francês) que entre “poli” e “tique” situava-se a sílaba “cri”, ou
seja, “grito”. Grito político, crítica política na qual o grito aí está
como um pulmão que respira; foi assim que sempre entendi, assim
continuarei entendendo e dizendo. É preciso gritar uma política
crítica, é preciso criticar gritando cada vez que se acredite justo:
só assim poderemos acabar um dia com os chacais e as hienas.

Julio Cortázar, “Policrítica na hora dos chacais” (1971).   



No capítulo final do célebre “Mitologias”, livro publicado em 1957, o francês Roland Barthes alerta para o fato de que não mantemos com os mitos relações de verdade, mas de utilização. “Existem objetos míticos que são postos de lado, entregues ao sono, por uns tempos; são apenas vagos esquemas míticos, cuja carga política perece quase indiferente. Trata-se unicamente de uma oportunidade de situação, e não de uma diferença de estrutura” – destaca Barthes, antes de concluir: “O mito, como se sabe, é um valor: basta modificar o que o rodeia, o sistema geral (e precário) no qual se insere, para poder determinar com exatidão o seu alcance”.

Barthes apresenta, como exemplo para suas reflexões, as ocorrências e significados dos mitos que surgiam na imprensa e na cultura de massa da França na década de 1950, mas suas reflexões também cabem perfeitamente para perceber a grandeza e o alcance de um mito atualíssimo como o líder cubano Fidel Castro, que morreu hoje, aos 90 anos. Dentro e fora de Cuba, Fidel há décadas já havia passado à História na condição de mito, alcançando a primeira grandeza, com todas as definições e características que tanto Barthes como outros grandes pensadores do século 20 apontam para o que seja “mitológico” – em suas questões e conjunções de representação coletiva elevada à categoria de metáfora universal.









Mitologias de Fidel: no alto, Otoño en el
Parque Almendares, fotografia de Julio
Maldonado Mourelle em Havana, Cuba, em
2006. Acima, o jovem Fidel Castro chupando
pirulito em foto com outros estudantes do colégio
Nuestra Señora de Dolores, em Santiago de Cuba,
1940; e na célebre fotografia de Alberto Korda,
que recebeu do autor o título David y Goliath,
durante a visita de Fidel ao Memorial Lincoln,
em Washington, EUA, meses depois da
Revolução Cubana de 1959.

Abaixo, outro registro de Alberto Korda,
fotógrafo oficial da Revolução Cubana e de
Fidel Castro: El Comandante falando
a jornalistas em Havana, em 1961
 



 


Morto em 1980, Barthes por certo acompanhou o desfecho lendário da Revolução Cubana de 1959 e os capítulos dramáticos da Ilha de Fidel nos anos e décadas seguintes, as aproximações com a extinta União Soviética, a rejeição com equivalência e peso de declaração de guerra aos Estados Unidos – mas não chegou a visitar Cuba nem a conhecer pessoalmente El Comandante, como fizeram muitos importantes escritores e intelectuais da esquerda que foram seus contemporâneos e conterrâneos. A lista dos admiradores e convivas de Fidel entre os grandes da intelligentsia” é extensa, incluindo, entre muitos outros, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, Marguerite Duras, Henri Cartier-Bresson, Arthur Miller, Noam Chomsky, Ernest Hemingway, Italo Calvino, Bernard Kouchner, Régis Debray, Jorge Semprun, François Maspero, Pablo Neruda, Julio Cortázar, Gabriel García Márquez, Eduardo Galeano, Octavio Paz, Carlos Fuentes, Gabriela Mistral, Violeta Parra, Fernando Birri, José Saramago, Jorge Amado, Darcy Ribeiro, Celso Furtado, Chico Buarque...



Herói mítico



Nenhum minuto da história é igual a outro; nenhuma ideia ou acontecimento humano pode ser julgado fora de sua própria época” – escreveu o próprio Fidel em 2004, em carta endereçada a outro líder revolucionário da América Latina, o venezuelano Hugo Chávez (1954-2013), reproduzida em “Fidel para Principiantes”, livro dos argentinos Néstor Kohan e Nahuel Skerma publicado em 2006 pela Era Naciente, editora de Buenos Aires. Herói mítico de sua própria época, desde o final da década de 1950 Fidel passou a representar a expressão máxima das rebeliões anti-imperialistas e socialistas do Terceiro Mundo – na América Latina, na África, na Ásia. Não é pouco.










Mitologias de Fidel – El Comandante
em fotografias de Alberto Korda: acima,
a prisão de Fidel em 1953, após a invasão
que ele liderou ao Quartel Moncada; e
com seus companheiros na guerrilha em
1957 em Sierra Maestra. Abaixo,
Fidel e Che Guevara na guerrilha,
em 1957 e na foto histórica em 1961











No comando de sua ilha, “tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos” – como diz a frase lendária e irônica atribuída a outra personalidade polêmica latino-americana, Porfírio Díaz, presidente do México no final do século 19 – Fidel sobreviveria a nada menos que 11 presidentes norte-americanos e a mais de 600 tentativas de assassinato, segundo informam seus biógrafos. El Comandante resistiu e continuou enfrentando por décadas o Grande Império, cujos dirigentes não conseguiram derrubá-lo, nem eliminá-lo, nem modificar os rumos da Revolução Cubana, até que em dezembro de 2014, com Barack Obama na Casa Branca, tiveram que admitir o fracasso e a derrota diplomática para, enfim, iniciar um processo de normalização das relações com o sistema político cubano.

Na exata medida de nossa alienação, não conseguimos ultrapassar uma apreensão instável do real: vagamos incessantemente entre o objeto e a sua desmistificação, incapazes de lhe conferir uma totalidade” – conclui Barthes em “Mitologias”. Novamente, o raciocínio serve como uma luva para o caso Fidel Castro, porque avaliar a figura mítica de Fidel não é tarefa fácil. Seu lugar é o do líder revolucionário que dividiu com outra figura mítica, Che Guevara (1928-1967), o enfrentamento contra o regime brutal e corrupto instalado em Cuba pelo ditador sanguinário Fulgêncio Batista, subserviente aos EUA, mas seu apoio a muitas guerrilhas do Terceiro Mundo e sua aliança posterior com Moscou também fizeram dele uma referência libertária e personagem-chave da Guerra Fria em escala planetária.












Mitologias de Fidel: acima, cenas
da Revolução Cubana em fotografias
do inglês Lee LockwoodAbaixo, a
capa do livro Fidel para Principiantes,
editado na Argentina; e a fotografia de
Alberto Korda de 1961 que registra
travessia de Fidel com o casal
Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir
pelo pantanal de Cienaga de Zapata,
durante a visita dos intelectuais
franceses a Cuba


 







Ação internacional



Para seus detratores, Fidel, em sua necessidade estratégica de fazer vingar a Revolução Cubana, atropelou direitos humanos e liberdades individuais, principalmente de opositores associados aos governos dos EUA e saudosos das práticas do antigo regime – ao que a imensa maioria da população da ilha responde com a salvaguarda dos avanços sociais, com a reforma agrária, com os sistemas de educação e saúde pública reconhecidos como exemplares no mundo inteiro, com a inexistência de analfabetismo e de desnutrição infantil e com a expectativa de vida que alcança 79 anos, muito além de qualquer país das vizinhanças.

Aos detratores de Fidel, muitos deles exilados e entrincheirados em Miami, a intelectualidade de Cuba vem repetindo o questionamento: como seria possível uma democracia formal com embargo comercial, econômico e financeiro? Durante décadas, Fidel resistiu bravamente e a revolução vingou em Cuba – e sua influência avançou muito além das fronteiras da ilha: ano após ano a reputação internacional do mito Fidel Castro foi construindo uma política externa de apoio a outras lutas no Terceiro Mundo, incluindo campanhas de alfabetização e de saúde pública, com destaque para a reputação humanitária da medicina e dos médicos cubanos – no caso brasileiro e também em vários outros países.










Mitologias de Fidel: acima, a entrada de
Fidel e Che com o Exército Rebelde em
Havana, em 1959; e El Comandante em
seu gabinete de trabalho, fotografado em
1959 por Burt Glinn. Abaixo, Fidel com
o líder soviético Nikita Khrushchev em
1963, durante a visita oficial a Moscou;
e Fidel no Brasil: poucos meses após a
Revolução Cubana, em 1959, com o
presidente Juscelino Kubitschek e seu
vice, João Goulart, fotografados no
Palácio Guanabara, no Rio de Janeiro;
e com dona Marisa Letícia Lula da Silva,
com o líder sindical Jair Meneguelli e
com Lula, na época presidente do
Partido dos Trabalhadores, em 1989,
em São Bernardo do Campo, São Paulo,
em fotografias de Luiz Prado,
durante um encontro de lideranças
de esquerda da América Latina















.





No passado recente, o mito Fidel Castro paira sobre casos e números que impressionam: atualmente, mais de 51 mil profissionais de saúde de Cuba trabalham em 66 países do mundo, tanto como voluntários como em missões remuneradas. Depois do maior acidente nuclear da História, em Chernobyl, em 1986, a medicina cubana teve destaque no tratamento a mais de 25 mil vítimas da radiação, entre adultos e crianças, que são recebidas em Cuba e atendidas no centro de atenção especial instalado no território cubano em Tarara desde 1990, tornando-se um complexo médico de referência internacional. Em 2010, o governo cubano enviou 1.200 médicos para combater a epidemia de cólera no Haiti após um terremoto, quando todas as missões estrangeiras de apoio à saúde haviam partido. Também recentemente, quando o pânico causado pelo Ebola assolava a África Ocidental, Cuba liderou os esforços de ajuda humanitária, enquanto missões oficiais da Europa e dos EUA mantinham distância.

Além da ação surpreendente contra a epidemia de Ebola, os povos de países da América Latina, da África e da Ásia também devem a Fidel esforços de guerra contra ditaduras, pela soberania nacional e pela libertação das antigas colônias em processos de independência contra países europeus e contra os regimes de Apartheid. Os registros oficiais mais conhecidos destacam, entre outros casos, ações de Cuba para impulsionar movimentos de esquerda em países latino-americanos, em apoio a brasileiros, argentinos, venezuelanos, bolivianos, colombianos, uruguaios, paraguaios, nicaraguenses, salvadorenhos, chilenos.







Mitologias de Fidel: acima, Fidel em 2010,
durante as celebrações do 50º aniversário da
criação dos Comitês para a Defesa da Revolução,
em Havana, fotografado por Desmond Boylan.
Abaixo, com Oliver Stone em Havana, em
2004, durante as filmagens do documentário
Procurando Fidel (Looking for Fidel).

Também abaixo, Fidel com Nelson Mandela
em Cuba, em 1991, em fotografia de
Omar Torres; com Hugo Chávez, da
Venezuela, e Evo Moralesda Bolívia, em
Havana, em 2006; e com Vladimir Putin,
presidente da Rússia, durante a visita
oficial de Putin a Havana, em 2000














Há, também, o apoio cubano à Argélia, na guerra contra o colonialismo francês, em 1961, e em 1963, na guerra contra o Marrocos; em 1965, quando Che Guevara e guerrilheiros cubanos passaram um ano no Congo, em Angola e em Guiné-Bissau; a participação direta de Fidel nos conflitos e nos acordos que levaram ao fim da Guerra do Vietnã, em 1973; o envio da força expedicionária de Cuba, através do Atlântico, em 1975, para ajudar a salvar Angola, na época recém independente, de uma invasão sul-africana; e o apoio à libertação de Nelson Mandela e sua escalada de resistência rumo à presidência e à pacificação na África do Sul.

Com o Brasil os laços diplomáticos de Cuba seriam retomados em 1985 e sinalizaram a retomada da Democracia: a primeira ação internacional da ditadura militar que tomou o poder em 1964 havia sido o rompimento das relações oficiais entre o governo brasileiro e o governo cubano. O receio de que o Brasil seguisse o exemplo da Revolução Cubana e se alinhasse à União Soviética foi um dos pretextos para o apoio decisivo do governo norte-americano ao golpe de Estado que levou à deposição do presidente João Goulart e implantou a ditadura que duraria décadas.

Depois da retomada oficial das relações diplomáticas, uma missão oficial do Brasil visitou Cuba em 1987 e, em 1989, o presidente Fidel Castro visitou o Brasil e teve participação importante, ao lado do futuro presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em um encontro de lideranças de esquerda da América Latina que aconteceu em São Paulo. Depois da eleição de Lula para a Presidência da República, as relações entre Brasil e Cuba ficaram mais próximas com acordos de cooperação em diferentes áreas. Lula realizou visitas oficiais a Cuba em 2003, em 2008 e em 2010. Em 2014, a presidenta Dilma Rousseff implantou um programa importante na área da saúde: o Mais Médicos, com participação ativa dos médicos cubanos no atendimento à população de baixa renda e também às comunidades mais afastadas dos grandes centros urbanos. 



Um mito e suas variações



Com o desfecho de sua trajetória mítica, as glórias e as polêmicas sobre Fidel proliferam. Herói revolucionário que enfrentou os EUA? Ditador que em nome da revolução ignorou os direitos humanos? Estrategista que treinou e armou guerrilheiros em lutas pela liberdade política em vários países de vários continentes? Tudo isso junto e misturado? Provavelmente sim: tudo isso e mais. Um mito é a soma de suas variações – explicaria Roland Barthes, nas reflexões reunidas em “Mitologias”, ressaltando que todas as possíveis variações são expressão da verdade última do mito.















Mitologias de Fidel: acima, El Comandante
no Brasil, em 2003, na posse do ex-presidente 
Lula;, fotografados por Ricardo Stuckert;
e com a ex-presidente Dilma Rousseff 
durante encontro em Havana em 2014.

Abaixo, Fidel com Dom Pedro Casaldáliga,
bispo católico e referência para a defesa dos
Direitos Humanos e para a causa dos povos
indígenas no Brasil; Fidel com o escritor
norte-americano Ernest Hemingway,
Prêmio Nobel de Literatura em 1954,
fotografados em Havana por Alberto Korda
em maio de 1960; Fidel com Jorge Amado,
em 1974, fotografados em Havana pela esposa
de Jorge, Zélia Gattai; Fidel em Havana com
Gabriel García Márquez em 1982, ano em que
o escritor venceu o Prêmio Nobel de Literatura;
Fidel com o jogador de futebol da Argentina
Diego Armando Maradona, militante de
esquerda e ativista das causas sociais; Fidel
com o Papa Francisco, também em Havana,
em 2015; e Fidel em duas fotografias de 1965
registradas por Lee Lokwood: discursando
para uma multidão em Havana e em um raro
momento de descanso, na Ilha de Pines,
ditando uma carta para a secretária.
Também abaixo, as homenagens póstumas
ao líder revolucionário nas ruas e na
Universidade de Havana, em três
fotografias de Alejandro Ernesto


























A História me absolverá” – declarou certa vez o próprio Fidel, na época um jovem revolucionário de 26 anos, preso depois de liderar em julho de 1953 a invasão ao quartel militar de Moncada, em Santiago de Cuba, uma ação de resistência contra o golpe de Estado em que Fulgêncio Batista tomou o poder e instalou uma ditadura sangrenta. A invasão terminaria de forma trágica, com a morte da maioria dos manifestantes e com a prisão do líder Fidel. A história, porém, nunca tem fim: é um constante vir a ser, como destaca o cientista político Moniz Bandeira em "De Martí a Fidel  A Revolução Cubana e a América Latina", livro de referência em que analisa a evolução do regime revolucionário de Cuba e as conquistas sociais desde os antecedentes da Revolução de 1959.

Depois de passar 76 dias preso em um cela solitária, Fidel, recém-formado em Direito, apresentou-se em 1953 para fazer sua própria defesa no julgamento. As palavras com que encerrou seu discurso de defesa no tribunal têm um caráter premonitório, quase de profecia – antecipando uma trajetória que estava apenas no início: “Sei que a prisão será dura como nunca foi para ninguém, cheia de ameaças, de enfurecimento ruim e covarde, mas não a temo, como não temo a fúria do tirano miserável que arrancou a vida de 70 dos meus irmãos. Condene-me, não importa, a História me absolverá.”


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Mitologias de Fidel. In: Blog Semióticas, 26 de novembro de 2016. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2016/11/mitologias-de-fidel.html (acessado em .../.../...).


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