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18 de outubro de 2011

O Jabuti do Castello






Muitos homens iniciaram uma nova era em
suas vidas a partir da leitura de um livro.
––  Henry David Thoreau, 1882.   


Carioca de 1951, o jornalista e escritor José Castello reconhece que há muitos elementos biográficos em "Ribamar", seu livro mais pessoal, anunciado como vencedor de 2011 da categoria romance do prêmio Jabuti. É um belo livro, com Castello na perícia do toque de mestre transformando referências musicais para marcar a jornada de um filho e uma homenagem ao pai do escritor, o também jornalista José Ribamar Martins de Castello Branco (1906-1982). Outros destaques na premiação deste ano do Jabuti: Laurentino Gomes, com o prêmio por “1822”, na categoria reportagem, Dalton Trevisan na categoria contos e crônicas, com “Desgracida”, e Ferreira Gullar, vencedor em poesia com “Em alguma parte alguma”.

"Trabalhei com muitas recordações de infância e de juventude. Usei o passado como matéria de ficção", revela Castello, sempre econômico nas palavras e nos adjetivos. O escritor e crítico literário esteve recentemente em Belo Horizonte para uma sessão de autógrafos no lançamento de “Ribamar” e para uma conversa com o público no projeto Sempre um Papo. Nesta entrevista que fiz com ele para o jornal “Hoje em Dia” de Belo Horizonte, na véspera do lançamento do livro, Castello descarta as classificações de memórias, biografia ou ensaio autobiográfico para seu livro, que como ele mesmo explica transita entre vários estilos, inclusive na categoria de partitura musical e também, de certo modo, como um ensaio ficcional sobre o escritor Franz Kafka. Confira alguns trechos da entrevista.







"É, sem dúvida, um romance", define Castello, com propriedade. "Romance limítrofe, que dialoga com outros gêneros literários, mas é um romance. Algumas pessoas, porque parto da figura de meu pai, Ribamar, acham que é um texto biográfico, ou autobiográfico. Muitos leitores e críticos ainda se confundem, achando que é um relato sobre a vida de meu pai, minha biografia paterna, ou um livro de memórias. Esse engano, acredito, se deve a uma ideia deturpada que muitos ainda mantêm a respeito do que seja uma ficção".



O real e a ficção



José Castello faz uma breve pausa durante a entrevista e depois lembra, com um meio sorriso, que a maioria das pessoas desconfia que a ficção é sempre algo que se eleva acima do real. "Muitos acreditam que a ficção não tem compromisso algum com o real, que é puro arbítrio. Mas não, não é assim, ou nem sempre é assim. A ficção não nega o real, não o apaga, ela o expande e o reinventa. A ficção não é qualquer coisa: ela é um olhar singular sobre a realidade da existência", defende.











Em "Ribamar", Castello alterna histórias reais com outras inventadas, ou recriadas, como ele prefere dizer. Em parte, o novo romance, editado pela Bertrand Brasil, traz referências ao pai de Castello"Meu pai era jornalista político, repórter do jornal O Globo, o mesmo de qual hoje sou colunista. Até 1960, enquanto a capital esteve no Rio, meu pai fazia a cobertura do Senado Federal. Não tinha o hábito de ler ficções, só comprava livro técnico. Em sua pequena biblioteca não havia um só livro de ficção", recorda, rindo de uma ou outra mania dos excessos paternos.

As lembranças do pai estão presentes na ficção como na vida real. "No início de minha adolescência, meu pai me repreendia porque eu gastava minha pequena mesada comprando romances e livros de poemas. Achava aquilo estranho e, pai amoroso, temia que eu me fechasse nos livros e me isolasse do mundo, o que, de certa forma, realmente aconteceu", confessa, sempre bem-humorado.










O Jabuti do Castello: no alto, 
o escritor José Castello. Acima,
duas imagens da cidade de Praga,
na Tchecoslováquia, atualmente
República Checa, terra natal
de Franz Kafka, em fotografias
anônimas datadas de 1900. Abaixo,
imagens da cidade de Parnaíba, Piauí


















"Ribamar" é, em parte, um relato da viagem feita anos atrás à pequena Parnaíba, Piauí, cidade onde o pai de José Castello passou a infância e a juventude. No outono de 2008, o próprio Castello fez uma viagem àquela cidade do Nordeste, experiência que lhe rendeu, ele recorda, uma infinidade de notas e sugestões preciosas para escritos em literatura.

O romance também é, ainda em parte, um ensaio emblemático e alegórico sobre um cânone da literatura universal, o escritor Franz Kafka (1883-1924), em particular sobre "Carta ao Pai" – longo e emocionado relato confessional que o autor de “O Processo” e “A Metamorfose” escreveu endereçado a seu pai, Hermann Kafka, com a intenção de fazer um balanço da difícil relação de vida entre os dois.







Literatura com estrutura musical

Mesmo com todas as citações à célebre "Carta ao Pai", José Castello garante que o propósito do novo livro não foi, de forma alguma, refletir a respeito da obra de Kafka, e sim tê-la como referência para pensar sua relação com seu próprio pai, chamado José Ribamar. Ele também reconhece que as referências a diversos outros livros que tratam da relação de escritores com seus pais são intencionais no novo romance.

"Mesmo quando o ignora, o escritor está dialogando com outros escritores. As leituras que fazemos ao longo da vida deixam marcar definitivas em nossa sensibilidade. Deixam feridas, que o escritor tenta cicatrizar encobrindo-as com seus próprios escritos", ele diz. Sobre Kafka, Castello completa explicando que é um escritor que, para ele, desde sempre, e desde muito cedo, tornou-se uma referência decisiva e uma identificação permanente.






"Preciso confessar que ler 'A Metamorfose' me deixou em estado de grande perturbação, logo me identifiquei com aquele filho massacrado pela família como um inseto. Não tenho dúvidas de que aquela leitura aos 11 anos foi uma peça decisiva de minha formação pessoal. Essas leituras ficam, fazem parte de nós, e estamos sempre a dialogar com elas", completa Castello.

"Ribamar" tem uma estrutura musical. A começar pela capa do livro, belo trabalho de design gráfico que reproduz em relevo uma partitura envelhecida. A base é uma canção de ninar, não sem propósito a música com que o pai embalava Castello quando ele era bebê. No livro, seguindo um relato híbrido, afetivo, cerebral, cada capítulo corresponde a uma das notas musicais da melodia. A cada nota, ainda, corresponde um tema específico. Ao fundo, uma melodia inaudível se desenrola, porque o romance é, na estrutura, uma combinação de oito temas, expressos em seus correlatos nas sete notas musicais elementares, mais a pausa. 








Você tem a alma fechada a cadeado”, diz uma certa Dora Dyamant no desfecho de “Ribamar”, ao que o narrador completa: “Franz sabia que a literatura é uma chave. Instrumento inútil que não corresponde a nenhuma fechadura. Uma chave que atesta o fracasso de todas as chaves. Sua carta ao pai é prova disso. Também 'Ribamar', o livro que me preparo para escrever, não passa de um ferrolho. Vale a pena escrevê-lo?” Os elogios unânimes de críticos e leitores e premiações importantes, por certo, valem como uma resposta decisiva ao que pergunta o narrador de Castello.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. O Jabuti do Castello. In: Blog Semióticas, 18 de outubro de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/10/o-jabuti-de-castello.html (acessado em … /… /...).








Jabuti 2011, livros e autores premiados:



Artes
:
“Os Satyros”, de Germano Pereira

Arquitetura e Urbanismo: “Dois séculos de projetos no Estado de SP”, Nestor G. Reis e Monica S. Brito

Biografia: “De menino a homem”, de Gilberto Freyre

Capa: “Invisível”, de João Baptista da Costa Aguiar

Comunicação: "Impresso no Brasil", de Anibal Bragança e Marcia Abreu (orgs)

Ciências da Saúde: “Atlas de endoscopia digestiva da SOBED”, de Marcelo Averbach

Ciências Exatas: “Teoria Quântica - estudos históricos e implicações culturais”, de Olival Freire, Osvaldo Pessoa, Joan L. Bromberg (org)

Ciências Humanas: “Manejo do mundo: conhecimentos e práticas dos povos indígenas do Rio Negro”, de Aloisio Cabalzar

Ciências Naturais: “Bioetanol de cana-de-açucar – P&D para produtividade e sustentabilidade”, de Luís Augusto B. Cortez (coord.)

Contos e Crônicas: "Desgracida”, de Dalton Trevisan

Didático e Paradidático: Coleção “Pessoinhas”, de Ruth Rocha e Anna Flora

Direito: “Fundamentos constitucionais do direito ambiental brasileiro”, de Norma Sueli Padilha

Economia, Administração e Negócios: “Multinacionais brasileiras: internacionalização, inovação e estratégia global”, de Moacir M. Oliveira Jr.

Educação: “Impactos da violência na escola: um diálogo com professores.”, de Simone G. de Assis, Patrícia Constantino e Joviana Q. Avanci

Fotografia: “Fotografia de Natureza”, Luiz Claudio Marigo

Gastronomia: “Machado de Assis: Relíquias Culinárias”, de Rosa Belluzzo

Ilustração: “O Corvo”, de Manu Maltez

Ilustração de Livro Infantil ou Juvenil: “Gildo”, de Sivana Rando

Infantil: “Obax”, de André Neves

Juvenil: “Antes de virar gigante e outras histórias”, de Marina Colasanti

Poesia : “Em alguma parte alguma”, de Ferreira Gullar

Projeto Gráfico: "Theodoro Sampaio – Nos sertões e nas cidades", de Karyn Mathuiy

Psicologia e Psicanálise: “Coração... É emoção: a influência das emoções sobre o coração”, de Elias Knobel, Ana L. M. da Silva, Paola Andreoli

Reportagem: “1822”, de Laurentino Gomes

Romance: “Ribamar”, de José Castello

Tecnologia e Informática: “Aprendizagem a distância”, de Fredric M. Litto

Teoria / Crítica: "Câmara Cascudo e Mário de Andrade – Cartas, 1924-1944", de
Marcos Antonio de Moraes (org)

Tradução: "O livro de Dede Korkut", de Marcos Syrayama de Pinto

Turismo e Hotelaria: "Hospitalidade – A inovação na gestão das organizações prestadoras de serviços", de Geraldo Castelli


21 de julho de 2011

Parábolas de Kafka













Em sua última fase, Kafka pensou em se mudar para Jerusalém
e intensificou, mais uma vez, os estudos de hebraico. Tivesse
vivido mais tempo, provavelmente acabaria emigrando para a
Palestina, aperfeiçoando o hebraico como língua viva e nos
ofertando o espetáculo desconcertante de parábolas e
histórias kafkianas escritas na língua de Judas Halevi.

––  Harold Bloom (1930-2019).    
 




Em um de seus muito conhecidos ensaios sobre a literatura do escritor de língua alemã nascido na cidade Praga, no antigo Império Austro-Húngaro, Franz Kafka (1883-1924), o professor e crítico literário Harold Bloom questiona: O que confere a Kafka uma autoridade espiritual tão única? A resposta, para Bloom e para qualquer leitor atento que conheça a obra em questão, alcança pontos de muita complexidade. Basta lembrar que poucos escritores tiveram seu nome transformado em adjetivo com tanta propriedade. "Kafkiano", na língua portuguesa, passou a designar algo surreal, muito complicado ou labiríntico, características marcantes da escrita deste genial escritor, laureado como cânone moderno ao lado de nomes como Marcel Proust e James Joyce: uma escrita de textos breves em que afloram o tom exasperado, atencioso ao menor detalhe, em temas que vão da alienação à perseguição implacável, do gnosticismo à religiosidade cifrada em dogmas teológicos.

Um estilo, enfim, que segundo os especialistas na obra do autor de "A Metamorfose" (1915) e "O Processo" (1925), ao retratar indivíduos preocupados com o pesadelo de um mundo impessoal e burocrático, expõe em profundidade os medos e as questões existenciais mais profundas de cada um de nós e de todos, incluindo, especialmente, o próprio Kafka, nascido em uma família judaica de classe média e falante do alemão, em uma época em que os moradores de Praga, na atual República Tcheca, em sua imensa maioria, falavam tcheco. Kafka, com sua angústia perante a realidade de seu tempo e também sua solidão interior, publicou apenas alguns poucos contos em vida, não terminou nenhum de seus romances e queimou cerca de 90% de seus escritos. O pouco que restou, incluindo obras como "O Processo", "O Castelo" e "O Desaparecido", foi publicado postumamente por iniciativa de seu amigo Max Brod, que não respeitou a vontade relatada a ele por Kafka, que era de ter todos os seus manuscritos destruídos.







Parábolas de Kafka: no alto, a capa do
álbum de Otto "Certa manhã acordei de
sonhos intranquilos"
, inspirado no livro
A metamorfose de Franz Kafka, com
produção visual do artista Tunga. Acima,
a capa de "Oportunidade para um pequeno
desespero"
, coletânea de parábolas de Kafka.
Abaixo, uma foto colorizada do escritor em
1910, em Praga, diante do prédio em
que morou com a família









Denso, filosófico, simbólico, mas também inaugurando na literatura uma mistura insólita entre o horrível e o absurdo, entre o cômico e o melancólico, que nenhum autor havia antes experimentado, mas que outros adotaram depois dele, o sentido quase sempre mítico e surpreendente dos textos de Kafka tem parentesco direto com as parábolas, aquele gênero sempre associado aos evangelhos bíblicos do Novo Testamento. Tal como as narrativas alegóricas de fundo religioso, baseadas em comparações e em formas diversas de analogias, as histórias e situações imaginadas por Kafka têm, sempre, um fim didático, baseadas em confrontos de crônicas de costumes ou observações analíticas sobre questões só na aparência simples ou insignificantes. 

O leitor brasileiro, que muito provavelmente, assim como eu, conhece a obra do autor tcheco pelas traduções para o português feitas por Modesto Carone, que a partir de "A Metamorfose", livro publicado pela Editora Brasiliense em 1983, traduziu até 2002 a obra completa de Kafka, agora tem mais uma possibilidade de mergulhar nesta obra emblemática. Muitos já haviam percebido o parentesco da literatura personalíssima de Kafka com as parábolas de tradições ancestrais, mas coube ao alemão Nikolaus Heidelbach a iniciativa de selecionar e ilustrar uma série delas, distribuídas na obra do autor de "A Metamorfose": em cada parábola selecionada, cada relato é sucinto, e em cada um dos pequenos fragmentos a simples e aparente normalidade da existência definitivamente sucumbe, em certo momento, diante do inadiável desespero da sobrevivência.



Ao longe, o cantar de um galo



A seleção de Kafka segundo Heidelbach chegou às livrarias com o título "Oportunidade para um Pequeno Desespero" (Editora Martins Fontes). São 26 textos, organizados e ilustrados por Heidelbach, que têm sabor de inéditos mesmo para o leitor brasileiro mais dedicado à obra breve e fundamental de Kafka. Com um senso de humor ferino, os desenhos de Heidelbach traduzem e dialogam com as parábolas em seus pequenos lances que traduzem grandezas cifradas.

Nikolaus Heidelbach selecionou as histórias do livro entre os diários, cartas e textos diversos de Franz Kafka, a partir de uma frase –– que dá título ao livro e foi extraída do romance "O Castelo" (1926), quando o personagem K. encontra-se sozinho na rua com os pés afundados na neve, entre um castelo e uma aldeia desconhecidos, e pensa, com uma fina ironia que questiona e ao mesmo tempo coloca em cheque o sentido tétrico da narrativa: "Oportunidade para um pequeno desespero".








Franz Kafka fotografado aos cinco anos, 
em 1888. Abaixo, na fotografia para o
primeiro passaporte e em um de seus
retratos mais conhecidos, com data de 1923.

Também abaixo, em fotografias do álbum
de família aos 13 anos, aos 18 e aos 23












A citação não vem reproduzida na edição, mas surge indiretamente na forma de epígrafe –– "Se alguém tem uma pele amarelada, não tem escolha a não ser mantê-la, mas não precisa, como Frieda, ainda por cima, vestir uma blusa bem decotada cor de creme, de forma que os nossos olhos transbordem de tanto amarelo (?). Em algum lugar um senhor até imitou o canto de um galo".

Entre os 26 textos, há "Cinco Amigos", que trata com humor a falta de sentido das relações humanas, como bem define o narrador: "E qual é o sentido, afinal, dessa contínua comunhão, também entre nós cinco não há sentido, mas agora já estamos juntos e vamos permanecer assim". Outras vertentes do humor, com lances de absurdo e de literatura fantástica, surgem no surpreendente "A Ponte", no qual um homem percebe o que é uma ponte e espera pelo seu próprio fim: da construção da muralha da China, o mecanismo burocrático é transportado para uma terra distante e, dessa forma, evidencia sua desumanidade.



Histórias mais absurdas



Nascido em uma família da classe média judia e falante da língua alemã, durante os tempos de crise do antigo Império Austro-Húngaro, Franz Kafka deixou alguns poucos textos escritos, obras na maioria incompletas, longes da versão final que pretendia um dia concluir. Publicadas depois de sua morte, estas poucas obras fizeram dele uma referência como um dos maiores escritores da Literatura Universal. 

Autor de novelas, romances e coletâneas de contos, Kafka escreveu também a turbulenta "Carta ao Pai" (1919), com mais de 100 páginas, e centenas de páginas de diários. Muitas das obras hoje conhecidas de Kafka ele não concluiu, especialmente as narrativas longas, entre elas os romances "América" e "O Castelo" e alguns capítulos de "O Processo" – romance escrito sem ordem cronológica e sobre o qual, como em vários outros casos, pairam controvérsias questionando se a edição oficial é mesmo a definitiva.


 




Em "A Metamorfose", seu texto mais conhecido, Kafka narra o caso de um homem que acorda transformado num gigantesco inseto. Em "O Processo", um certo Josef K. é julgado e condenado por um crime que ele mesmo ignora. Em "O Castelo", o agrimensor K. não consegue ter acesso aos senhores que o contrataram, enquanto "Na Colônia Penal" (1914) fala sobre uma máquina que tem o poder de executar sentenças.

No sistema jurídico arbitrário de "Na Colônia Penal", apenas imaginado por Kafka, no qual o acusado não tem direito à defesa, um instrumento de tortura escreve, lentamente, sobre a pele do corpo do condenado, a sentença do crime que, muitas vezes, nem mesmo ele sabe que cometeu. Kafka antecipa, em muitas décadas, um termo que a Teoria Geral do Direito só iria incorporar em meados dos anos 1970: o "Lawfare", palavra-valise formada por "law" (lei) e "warfare" (guerra), podendo ser traduzida em português como "guerra jurídica", ou uma guerra em que a lei e manobras jurídico-legais são usadas como arma contra um adversário para fins de perseguição política.
  






Como sempre, em Kafka, no território de "Na Colônia Penal" não há sinal algum de redenção. Trata-se, na verdade, de uma história absurda sobre uma Colônia que usa esta máquina para torturar e matar pessoas, sem que estas sequer saibam o porquê de sua morte. Para a maior parte dos críticos e pesquisadores de literatura, os protagonistas das narrativas de Kafka são projeções dele mesmo e de sua incapacidade de adaptação na vida social e nos estudos.



Pesadelos burocráticos



Autor de uma literatura personalíssima que quase não encontra paralelos com obras produzidas nos séculos anteriores – e que deu origem ao adjetivo “kafkiano”, aplicado quando o que está em jogo são perseguições e situações características dos escritos do autor, Kafka retrata, talvez invariavelmente, indivíduos comuns preocupados com os pesadelos avassaladores de um mundo impessoal, injusto e burocrático. Um mundo que domina, que oprime, sem critério e sem justificativa.














O mais velho de seis filhos de um pai descrito pelo biógrafo Stanley Corngold (em "Introdução à Metamorfose", 1972) como “um grande negociante egoísta e arrogante", e pelo próprio filho como "um verdadeiro kavka ("gralha", em tcheco) nos quesitos força, saúde, apetite, sonoridade vocal, resistência e conhecimento da natureza humana" (em "Carta ao Pai"), Kafka atingiu pouca ou nenhuma fama, nem prestígio, com seus livros, na maioria editados postumamente. Em cada texto, o autor abarca à perfeição o conceito de “literatura moderna” e expõe seus medos, sua angústia perante o mundo, sua solidão e sua relação problemática com a família e os círculos sociais de sua época. Morreu em junho de 1924 num sanatório perto de Viena, onde se internou com tuberculose.

Desde então, seu legado único, incompleto, pessimista – resgatado e publicado pelo amigo Max Brod – exerce enorme influência na literatura e na cultura em geral, com adaptações para o cinema e outras mídias e como referência para outros escritores, artistas de áreas diversas e também músicos, como comprova o trabalho singular do cantor, compositor e instrumentista Otto em videoclipes, no show, nas canções e na concepção do CD intitulado “Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos”.





















 

Imagens de Franz Kafka: a partir do alto,
em gravura de Andy Warhol datada de 1980;
com sua irmã Ottla em fotografia de 1914;
com Felice Bauer, sua principal paixão amorosa,
em fotografia de 1917; e em passeio com amigos,
também em 1917, nos arredores da cidade de Praga.

Abaixo, retratado em duas imagens pelo traço
do cartunista Robert Crumb, no álbum lançado
em 2005 no formato de história em quadrinhos;
e em duas imagens pelo traço da cartunista
Chantal Montellier, que lançou O Processo
também em quadrinhos, em 2009, em parceria
com o escritor David Mairowitz. Também
abaixo, na praia, com o amigo Max Brod;
e em uma fotografia colorizada































O artista intranquilo



"Certa manhã, quando Gregório Samsa acordou, após um sono intranquilo, achou-se em sua cama convertido em monstruoso inseto". O músico pernambucano Otto tomou emprestada esta frase célebre, que abre o livro "A Metamorfose", uma das obras mais conhecidas de Franz Kafka, para batizar um dos melhores CDs da safra recente produzida no Brasil, o impecável "Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos". 

O quarto álbum de estúdio do cantor, compositor e percussionista pernambucano – lançado no apagar das luzes de 2009, pelo selo Arterial Music, reunindo dez canções, oito delas inéditas, com sonoridade dançante e belas letras cheias de melancolia – consumiu cinco anos de trabalho do músico. Mas todo o esforço foi recompensado com a aclamação pelo público que acompanha a trajetória de Otto, além do histórico de prêmios que conquistou e dos elogios unânimes dos críticos mais renitentes, no Brasil e no exterior.








"Deu sim muito trabalho e muita aporrinhação, mas o resultado eu acho que traduz um pouco do meu melhor", explica Otto, com muita calma e muito bem-humurado, do Rio de Janeiro, na entrevista que fiz com ele por telefone, para um jornal de Belo Horizonte. A entrevista foi feita em uma data das mais emblemáticas do calendário político brasileiro: a tarde do feriado do dia sete de setembro. Lembro a ele da data especial e do simbolismo que ela representa, assim que começamos a entrevista. 

"Sim, engraçado que hoje é mesmo dia sete de setembro, isso mesmo, o dia em que Dom Pedro gritou que era independência ou morte", ele constata, meio que achando graça de sua distração com o calendário. "Mas agora tem também o 11 de setembro, que virou uma outra data emblemática no mundo inteiro. Há muito tempo que penso nesta data do 11 de setembro para um show que seja mesmo marcante, que chegue para ficar na cabeça das pessoas como uma lembrança boa, porque as lembranças boas é o que movem a vida da gente", ele diz.









Não por acaso, Otto escolheu outra data cabalística como cláusula prevista em contrato para o lançamento do próximo disco. "Dia 11 do 11 de 2011 é a data marcada e assinada para a estreia do próximo show e para o lançamento do próximo CD, que vai trazer canções inéditas sobre garotas, máquinas e amores", ele conta, antecipando detalhes mirabolantes, ideias e planos "alguns impossíveis para agora, mas gravados na ponta do lápis para uma próxima", ele diz - para a produção do próximo trabalho.



Um cenário que lembra a Lua



"Será um disco experimental, diferente, com uma mistura de sons e de ritmos, umas coisas de sons espaciais e muitas referências ao Pink Floyd, que eu amo de paixão, e ao filme 'Farenheit 451', de François Truffaut, que é uma coisa que mexeu muito e ainda mexe muito comigo, mais a presença luxuosa de um bando de músicos que eu acho que são de primeira linha", destaca Otto.

"Já está tudo acertado", ele diz. "Ah, e tem também a participação muito especial de dois mestres que são o Naná Vasconcelos e uns remixes de passagens de som do Fela Kuti, os dois vão estar presentes no espírito do disco, meu grande mestre pernambucano, pioneiro em misturar percussão com mil coisas, e meu mestre africano, pioneiro da música que a gente chama hoje de afrobeat".









"Já tenho até a foto da capa do próximo CD na cabeça: será um cenário que lembra a lua, com um trono africano e eu e os músicos montados em trajes da tradição tribal. Tem também um verso que está me perseguindo e que deve conduzir as composições que ainda estão por vir. O verso é assim: há um lado da cama que existe entre nós" ele recita, cantarolando o improviso ao telefone e explicando o parentesco intrincado das novas ideias com outros discos, outras canções, outros filmes e livros.

Enquanto o próximo disco vai fervilhando na cabeça do artista, o último CD segue rajetória de sucesso, com turnê de Otto e banda pelo Brasil e outros países e elogios na imprensa internacional entre eles o aval do sisudo "The New York Times", que rasgou elogios em longa matéria especial e chamou Otto de "Moby do sertão" – em referência ao festejado artistas da cena eletrônica dos EUA. 
 






O Moby do sertão



Como se não bastasse, o CD "Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos" – que traz projeto gráfico surpreendente e fotos na capa e encarte de Cafi e Talita Miranda que registram Otto na Floresta da Tijuca – também emplacou simultaneamente duas canções com sucesso em trilhas de novelas que disputaram a audiência no mesmo horário. Coisa rara. Otto emplacou "Crua" como um dos principais temas musicais em "Passione", da Rede Globo, e "Naquela Mesa", na trilha de "Ribeirão do Tempo", da Rede Record.

"Este disco, com este título que no princípio todo mundo achava esquisito, é de certa forma minha evolução", ele diz. "Do primeiro CD, 'Samba pra Burro', posso dizer que é o que mais gosto, porque era uma carta de intenções. Os seguintes, incluindo o 'Condom Black' e o 'Sem Gravidade', também acho bons, fortes. Mas este atingiu um ponto legal, porque é um disco difícil, sofisticado, literário, que está provando que é possível sim, tocar as pessoas e emocionar e divertir e fazer pensar sem abrir concessões e sem explorar o mais fácil, o previsível. E também não pode ser impaciente”, ele diz, citando a sabedoria da literatura de Kafka:

"Tem uma passagem muito bonita do Kafka que eu li e que ficou na minha cabeça. Ele fala que talvez exista apenas um pecado capital, que é a impaciência. Muito louco isso. O Kafka escreveu que foi por causa da impaciência que fomos expulsos do Paraíso. E depois diz que é por causa da impaciência que não podemos voltar”.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Parábolas de Kafka. In: Blog Semióticas, 21 de julho de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/07/parabolas-de-kafka.html (acessado em .../.../…).



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