A
admiração começa onde acaba a compreensão.
–– Charles
Baudelaire (1821-1867).
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Uma
definição célebre de Jean de La Bruyère sobre o espetáculo da
ópera, datada de 1691, também poderia servir como uma luva para
explicar a magia do cinema, que ainda iria demorar três séculos
para chegar às plateias. Segundo La Bruyère, "o que
caracteriza esse espetáculo (a ópera) é que ele mantém o
espírito, os olhos e os ouvidos em igual encantamento". Foi
assim desde as origens: nas encenações dos gregos e outros povos na
Antiguidade Clássica, séculos antes de Cristo, passando pela
retomada e aperfeiçoamento do gênero na Europa da Renascença, as
grandes montagens de ópera perseguem a ambição de renovar a
ancestral aliança entre as artes visuais, a palavra e a música.
A
definição sucinta e perspicaz do francês La Bruyère (1645-1696) –
famoso por uma única obra, “Dos Personagens ou Costumes do Século”
(1688) – indica que há séculos as engrenagens e estratégias
adotadas em cena aumentam e embelezam a ficção, mantendo o
espectador na doce ilusão que é todo o prazer do teatro e da arte,
em última instância. As ideias de La Bruyère sobre o que em sua
época era um novo gênero são citadas como ponto de partida pelo
sábio Jean Starobinski em um livro essencial para quem se interessa
pela complexidade da ópera: "As Encantatrizes", editado no
Brasil pela Civilização Brasileira.
Embelezado
pelas ilustrações de Karl-Ernst Herrmann e Erich Lessing, a edição
em português do estudo do veterano pensador da Universidade de
Genebra, Suíça, faz um passeio pelos grandes momentos da história
do gênero operístico. O traço analítico de Starobinski encontra
as origens do espetáculo e traça o “resumo da ópera”: seus
grandes autores e compositores, os libretos que marcaram época e
fizeram a glória de maestros, sopranos, tenores e barítonos.
Da tradição às novas linguagens
Rivalizando
com o teatro, com o cinema e os espetáculos populares, a ópera,
lembra Starobinski, já foi sentenciada como morta e acabada mais de
uma vez, no passado recente. Mas sempre retorna, revigorada e
surpreendendo plateias, seja em montagens tradicionais, seja na
experimentação radical ou no investimento em novas linguagens e
artifícios tecnológicos.
Linguista,
filósofo, especialista em análises dos clássicos de Montaigne,
Diderot e Rousseau, professor de literatura, de semiótica e de
história da medicina, crítico literário e de artes plásticas,
Starobinski, que nasceu em 1920, é celebrado nos meios acadêmicos
como um dos principais pensadores vivos. No novo livro, persegue
respostas para o "encantamento" que a ópera vem
perpetuando através dos séculos e empreende um vigoroso diálogo
com pensadores de diversas épocas.
Sob
o crivo intelectual de Starobinski, teatro, poesia, pintura,
escultura, dança, música e todas as diversas manifestações
híbridas da arte que convergem ao vivo para a realização da
montagem operística são reveladas através da estrutura do conto de
fadas. O “faz de conta”, ele alerta, é determinante para o
encanto da montagem, que por sua vez influenciou outros gêneros
através do tempo e está na origem do próprio espetáculo do
cinema, com o qual a ópera rivalizou desde a primeira metade do
século 20.
Autor
de “As Palavras sob as Palavras” (1971) e “A Invenção da
Liberdade” (1964), entre outros estudos fundamentais lançados
no Brasil, em “As Encantatrizes”, que foi publicado e premiado em
seu país de origem em 2005, Starobinski abre a discussão sobre o
gênero do espetáculo. Com instrumentos tomados de empréstimo dos
estudos em história e filosofia, o autor busca o contexto e a
estrutura intersemiótica das diversas encenações e retoma o
surpreendente verbete "ópera" da primeira "Enciclopédia"
organizada por Denis Diderot (1713-1784):
"É
o divino da epopeia em espetáculo. Como os atores são deuses ou
heróis semideuses, eles devem se anunciar aos mortais através de
uma inflexão de vozes que ultrapasse as leis do verossímil
habitual. Suas operações se assemelham a prodígios. É o céu que
se abre, o caos, os elementos que se sucedem, uma nuvem luminosa que
traz um ser celeste. É um palácio encantado que, ao menor sinal,
desaparece e se transforma em deserto", aponta Diderot.
Uma certa sinestesia
Contra
o esquematismo do enciclopedista, Starobinski argumenta que "uma
ópera sem divindades nem feiticeiros, mas na qual as paixões são
grandes e nobres, também pode responder à expectativa do
encantamento". A investigação também recorre a Jean-Jacques
Rousseau (1712-1778), para quem a ópera se esforça por reunir todos
os charmes das belas-artes na ação apaixonada.
"As
partes constitutivas da ópera são o poema, a música e a
cenografia", determina Rousseau, citado por Starobinski. Nas
análises empreendidas pelo sábio do século 18, o autor de “As
Encantatrizes” percebe uma atenção ao espetáculo que antecipa
uma certa sinestesia de apelo simultâneo aos sentidos: "Pela
poesia se fala ao espírito; pela música, ao ouvido; pela pintura,
aos olhos, e o todo deve somar-se para comover o coração e levar ao
mesmo tempo, através de diversos órgãos, a mesma impressão até
ele".
A
partir do século 19, destaca o autor de “As Encantatrizes”, a
ópera escolherá seus personagens não somente no repertório da
mitologia clássica, mas também na crônica social e mundana – em
exemplos patentes como a cigana Carmen, que a partitura de Bizet
adaptou da novela romântica de Prosper Merimée, ou a cortesã
Violeta de "La Traviata", de Verdi, por sua vez baseada no
romance "A Dama das Camélias", de Alexandre Dumas Filho –
personagens que também tiveram versões memoráveis no último
século no cinema e nos palcos de teatro do mundo inteiro.
“As
Encantatrizes” de Starobinski convida o leitor a uma extensa e
sofisticada viagem no tempo, em visita a alguns dos principais
compositores, suas obras e, claro, as grandes atrizes/cantoras –
objeto central do estudo apresentado. As cenas políticas, sociais e
estéticas da Europa do século 18 e 19 são desvendadas sob a ótica
da ópera enquanto gênero de espetáculo, muitas vezes considerada
como a melhor tradução para o espírito da época.
Didático,
minucioso, poético, Starobinski revela os bastidores da apresentação
de espetáculos memoráveis, como as primeiras adaptações musicais
dos dramas, tragédias e comédias de William Shakespeare
(1564-1616), assim como os sucessos instantâneos e duradouros de
obras como “As Bodas de Fígaro” – imortalizada pela montagem
em quatro atos, de Wolfgang Amadeus Mozart, que estreou em 1786, em
Viena, com libreto em italiano.
Semiótica da recepção
Não
por acaso citada por Starobinski entre as óperas mais populares de
todos os tempos, “As Bodas de Fígaro” foi uma criação original
do francês Pierre-Augustin Caron de Beaumarchais (1732-1700), também
autor de “O Barbeiro de Sevilha”. Com seu estudo centrado na
união das palavras “encantar” e “cantatriz”, em francês
“enchanteresses”, como indica o título do livro, Starobinski
percorre a trajetória dos grandes clássicos, mas justifica que
escolheu retratar em destaque personagens sempre no feminino.
A
figura feminina domina a cena e cada partitura que sobreviveu ao
tempo, apesar de existirem protagonistas masculinos, também
presentes na trajetória que o livro percorre, ainda que em segundo
plano. Mais que um esforço de enumeração histórica, ao resgatar
dos gêneros da narrativa e do espetáculo às questões de compasso
musical e de perspectiva geométrica do campo de visão, “As
Encantatrizes” vai muito além dos domínios restritos à ópera.
Erudito
ao extremo e narrador hábil, Starobinski alcança conceitos e
teorias mais recentes sobre a Semiótica da Recepção, terreno que o
italiano Umberto Eco e o francês Roland Barthes estenderam de forma
pioneira às artes em geral e aos processos midiáticos e técnicos
que proliferaram nas últimas décadas. Eco e Barthes também são
lembrados e citados no mergulho em profundidade que Starobinski faz
no mundo da ópera, assim como Erich Auerbach, René Wellek, George
Steiner, Harold Bloom...
Na
investigação esquadrinhada por Starobinski, poesia e teoria
direcionam o entendimento acerca do fenômeno que o espetáculo há
séculos perpetua: “Nas mais belas representações operísticas
percebe-se a dupla energia de uma memória que persevera e de uma
imaginação que inventa. No momento do espetáculo, e desde que a
encenação não o prejudique, se produz o único encantamento no
qual, nós, retardatários, somos admitidos”.
Ao final
do percurso investigativo e analítico que Starobinski empreende em
"As Encantatrizes", como nas melhores montagens dos
clássicos presenciados ao vivo pelas plateias, resta ao leitor um
sentimento que para alguns talvez possa ser definido como fascinação.
Para outros, uma impressão difusa pela recompensa de ter encontrado
nas teses do pesquisador de Genebra algumas respostas sobre a
complexidade do estranhamento que o espetáculo operístico
proporciona.
Na
conclusão que o autor alcança, depois das teorias e muitas
trajetórias alinhavadas em pouco mais de 300 páginas, a fascinação
dos sentidos e o encanto declarado pela complexidade se equivalem.
Não por acaso, encanto e fascinação são os mesmos sentimentos que
fazem a ópera transcender o passado e ainda assombrar o presente.
por José
Antônio Orlando.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. Resumo
da ópera.
In: Blog
Semióticas,
27
de março
de 2012.
Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2012/03/resumo-da-opera.html
(acessado em .../.../...).
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Resumo
da ópera: acima, dois momentos
distintos
e históricos do canto lírico, com
a
diva Maria Callas em “Habanera”, ária
da
ópera Carmen, que a partitura do
francês Georges
Bizet adaptou do
romance
de Prosper Merimée; e
Luciano
Pavarotti com Grace Jones
interpretando
ao vivo, em 2002, em
Angola,
África, uma ária da ópera
Werther,
do francês Jules Massenet,
baseada
no romance do alemão
Johann
Wolfgang von Goethe